segunda-feira, 5 de maio de 2008

diário, que ja estava virando anuário

Trecho do 2008.


14/03/2008
segunda-feira
deve ser lá por 22:40, a noite esta agradável com um vento fresco soprando, o céu está limpo. Em algum lugar entre Tatuí e Itape... Cometa, motorista Sergião.


Já faz um bom tempo que não escrevo. Diversos motivos me levaram a te deixar na estante a mercê da poeira, traças e minha indiferença. Motivos os quais eu irei te contar e assim obter minha absolvição. Eu não me lembro ao certo quando parei de escrever coisas a meu respeito, mas me lembro quando comecei. Definitivamente nunca fui um bom aluno e passado 13 anos desta constatação estou perdendo as esperanças que um dia eu venha a me tornar. Se existisse alguma patologia para minha inépcia eu a batizaria de 4D, D de displicência, dispersão distração e disléxico. Mas ao contrario do que deve estar pensando, isso nunca foi nenhum problema.
Minha displicência me condicionou a encarar as coisas a minha volta de uma maneira muito tranqüila, nunca as levei muito a sério. Sou um acidente da matéria e minha consciência e o acidente olhando ao redor de si mesmo. Com a minha mente dispersa pude alçar vôos fantásticos, indo do centro da terra ao fim do universo com as minhas poderosas asas as quais faria inveja até a Ícaro. Com os meus olhos distraídos, vislumbrei reinos fantásticos escondidos em jardins numa tarde de primavera, eu vi a verdadeira beleza que se esconde em uma mulher braços delgados, sorriso espontâneo, um jeito de andar que nem toca ao chão. E minha dislexia me obrigou a escrever, dando assim a oportunidade de escutar o que tenho a dizer. Mas isso não é algo trivial. É tão perigoso, quem tentou sabe. Perigo em mexer no que está oculto. Mas de qualquer forma tenho que continuar. Vivo a me perder dentro de mim; vivo me perdendo de vista. Preciso ter cuidado porque sou todos os caminhos... Inclusive o inevitável fim. E escrevendo eu lanço migalha de pão para que um dia eu possa voltar.
Bom mais foi ai que começou, uma vez diagnosticada minha dislexia, comecei a te contar coisas. Só que ultimamente perdi o costume. E esqueci como se fazia. Fui pedir ajuda.
A mulher que trabalha no guinche da rodoviária em minha cidade chama-se Denise e é uma das maiores romancistas inéditas do Brasil. Ao longo dos anos, ela escreveu 42 romances, nenhum dos quais chegou às livrarias. No entanto, tive a sorte de ouvir os últimos argumentos de suas últimas 27 obras relatados em capítulos pela própria autora sempre que punha os pés no estabelecimento para comprar passagem esperar alguém ou apenas para escutá-la. Meu respeito pelos dotes literários de Denise é ilimitado. Portanto, ao me deparar com aterrorizante tarefa de começar a escrever, nada mais natural que eu a tenha procurado em busca de conselhos.
– Bonita, eu não faço idéia de como voltar a escrever.
– Tenho um monte de idéias na cabeça e quero pôr no papel, como abordo primeiro? Por onde começo?
Sem levantar os olhos do bloco de passes que estava contando, Denise, de bom grado, ofereceu-me uma pérola de sabedoria com sua voz repleta de condescendência.
– Comece pela coisa mais triste que conseguir imaginar e conquiste logo a simpatia do leitor. Depois disso, vai por mim, tudo fluirá sem esforço. Obrigado bonita.
Mas como sou o único leitor e nem preciso me esforçar para saber qual vai ser o próximo passo. Tinha que ser algo que mexesse comigo, algo que causasse um impacto quando eu lesse. Embarquei no meu ônibus e tinha 240 quilômetros para pensar e reconstruir todos os momentos desagradáveis que passei neste 23 anos de existência.
Confesso que fiquei chateado por não haver muitos. Embora não tenho momentos de grande tristeza consequentemente não tenho momentos de grandes felicidades. E por mais que tentasse recordar algum momento triste minha displicência sempre entrava em ação para atenuar o impacto do fato. Nietzsche disse uma vez “abençoados sejam os esquecidos, pois tira o melhor de seus equívocos” eu digo “abençoado sejam os displicentes e distraídos, pois sabem tirar o melhor da sua melancolia”. Distraídos venceremos.
E o cometa Halley foi deslizando pelo asfalto vencendo a distancia que separava minha terra natal e a selva de pedra. Eu ainda não tinha minha história. E nem a teria. Os afazeres do cotidiano não ajudaram em nada. E te larguei em algum canto mais uma vez. Os dias passaram em eu já havia me esquecido de você.
Até que numa noite saindo da faculdade eu caminhei de volta a rodoviária com a mente reduzida a um espaço vazio pelas varias preocupações daquele dia. Repentina e inesperadamente, ouvi um grito de uma coruja caçando.
Era um pássaro de idade avançada, com o guincho de um ancião enlouquecido rodopiando pelo céu negro e gélido de encontro a entrecortadas nuvens noturnas, e o som me fez para imediatamente. É uma falácia supor que as corujas guincham para assustar as presas, arrancando-as dos esconderijos como muitos sugeriram. O grito da coruja caçadora e uma voz do Inferno e transforma os ratos em estátuas. Em meu instante de paralisia entre os automóveis adormecidos, entendi o propósito por trás do guincho com uma clareza penetrante, do mesmo modo como o compreendi quando menino, deitado de costa no solo quente de verão. Naquele momento prolongado e atemporal, eu compartilhei o medo animal com as outras criaturas menores e mais vulneráveis, que também ouviram o som e estavam tão imóveis quanto eu. A coruja não estava tentando assustar o seu alimento para que ele se revelasse. Por horas empoleirada com quietude desconcertante sobre o galho, sorvendo as trevas através de suas pupilas dilatadas, ela já havia localizado o seu jantar. O guincho serviu apenas para transfixar a guloseima escolhida, prendendo-a ao chão com um prego de terror cego e impotente. Sem saber qual de nós havia sido selecionado, eu me mantive imóvel juntamente com os roedores do campo, meu coração batendo forte enquanto esperava pelo repentino aperto de dedos afiados que seriam a primeira a única indicação de que eu era a vitima.
Em um ponto afastado na escuridão crepuscular eu pensei ter ouvido alguma coisa pequena emitir o seu derradeiro lamento. O momento havia passado. Eu podia me mover mais uma vez, juntamente com os demais habitantes aliviados e invisíveis da grama alta. Estávamos salvos. Ela não estava gritando para nós, não daquela vez. Podíamos prosseguir com os nossos assuntos noturnos, com nossas vidas, buscando comida ou parceiro. Não estávamos nos debatendo nervosamente em trevas sufocantes e fétidas, as cabeça metida na goela de um horror alado, nossas caudas oscilando pateticamente para fora daquele bico em forma de cimitarra antes que as nossas patas traseiras fossem finalmente expelidas junto com a nossa pele vazia curiosamente virada do avesso. Embora eu tenha recuperando a capacidade motora após o guincho da coruja, percebi que o meu equilíbrio não havia voltado inteiramente. Alguma faceta da experiência tocou uma corda em mim, forjou uma conexão entre o meu eu adulto insensível e combalido com a criança que se deitava sob a débil luz das estrelas enquanto os grandes caçadores da noite encenavam dramas de fome e morte no ar acima de mim. Recordei de uma história triste, e entendi o porquê estava tão difícil. Aquela eu tanto procurava e tanto lutei para esconder.
Ocorre nas férias de verão a 14 anos atrás....

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