quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Espírito Livre

Pode-se supor que um espírito, em que o tipo “espírito livre” deva tornar-se alguma vez maduro e doce até a perfeição, teve seu acontecimento decisivo em um grande livramento e, por isso mesmo, quer era antes um espírito ainda mais prisioneiro e parecia acorrentado para sempre a seu canto e pilar. O que liga mais firmemente? Que malhas são quase impossíveis de rasgar? Em homens de uma espécie alta e seleta serão os deveres: aquela veneração, que é própria da juventude, aquela reserva e delicadeza diante de tudo o que foi venerado e digno desde sempre, aquela gratidão pelo chão qual cresceram, pela mão que os conduziu, pelo santuário onde aprenderam a rezar – até mesmo seus instante supremos os prenderão com a máxima firmeza, os obrigarão mais duradouramente, como um tremor de terra: a alma jovem e abalada de uma vez, arrancada, arrebatada – ela mesma não entende o que se passa. Um impulso e ímpeto reina e se torna senhor dela como um comando: desperta uma vontade e desejo de ir avante, para onde for, a qualquer preço: uma impetuosa e perigosa curiosidade por um mundo inexplorado se inflama e crepita em todos os seus sentidos. “ Antes morrer do que viver aqui” – assim soa a voz imperiosa e a sedução: e este “aqui”, esse “em casa”, é tudo o que ela havia amado até então! Um Súbito pavor e premonição contra aquilo que ela amava, um relâmpago de desprezo contra aquilo que para ela se chamada “dever”, um desejo tumultuoso, arbitrário, vulcânico, de andança, estrangeiro, estranhamento, resfriamento, sobriedade, enregelamento, um ódio ao amor, talvez um gesto e um olhar iconoclasta para trás, para ali onde ela até então rezara e amara, talvez uma brasa de vergonha daquilo que acaba de fazer e, ao mesmo tempo, um regozijo por tê-lo feito, um arrepio bêbado, interno, jubilante, em que se denuncia uma vitória – uma vitória? Sobre o quê? Sobre quem? Uma enigmática, interrogativa, problemática vitória, mas sempre a primeira vitória: - eis o que há de ruim e doloroso na história do grande livramento. É, ao mesmo tempo, uma doença, que pode destruir o homem, essa primeira vitória: - eis o que há de ruim e doloroso na história do grande livramento. É, ao mesmo tempo, uma doença, que pode destruir o homem, essa primeira irrupção de força e vontade de autodeterminação, de valoração própria, essa vontade de vontade livre: e quanto de doença, que se exprime nos selvagens ensaios e excentricidades com que o que se livrou, o libertado, procura doravante demonstrar seu domínio sobre as coisas! Ele ronda cruelmente, com uma cupidez insatisfeita; o que ele pilha tem de pagar pela perigosa tensão de seu orgulho; ele estraçalha o que o atrai. Com um riso maldoso ele revira o que encontra encoberto, poupando por alguma vergonha: ensaia como seria o aspecto dessas coisas quando viradas no avesso. É arbítrio e gosto pelo arbítrio, se talvez ele dispensa agora seu favor ao que até então tinha má reputação - se ele, curioso e inquisidor, se esgueira ao redor do mais proibido. No fundo de sua agitação e errância – pois ele é intranqüilo e sem rumo em seu caminho como em seu deserto – está o ponto de interrogação de curiosidades cada vez mais perigosas “ Não se pode desvirar todos os valores? E bom e talvez mau? E Deus apenas uma invenção e refinamento do diabo? É talvez mau? E Deus apenas uma invenção e refinamento do diabo? È talvez tudo, no último fundo, falso? E se somos os enganados, não somos por isso mesmo também enganadores? Não temos de ser também enganadores?” – tais pensamentos o conduzem e seduzem, cada vez mais adiante, cada vez mais além. A solidão o rodeia e enrodilha, cada vez mais ameaçadora, mais sufocante, apertando mais o coração, aquela terrível deusa e mater saeva cupidinum – mas quem sabe, hoje, o que é solidão?...

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